Gosto doce de cacau e o amargo de saudade
Essa semana de dentro de um carro, numa avenida nunca visitada voltei para o lugar que achei que duraria para sempre, lugar que apresentaria para a pessoa que fosse dividir comigo, como outros fizeram, achei que meus filhos correriam por aquela grama, comeria cacau como eu fiz, mas esse lugar não era eterno, pelo menos não foi para mim.
Não me recordo de como cheguei nesse ponto numa sexta qualquer, mas acho que foi após comparar o gosto de rã com tilápia que me lembrou da época em que comia traíra, um peixe bem horroroso, que encontrava na presa da propriedade da minha avó. Meu namorado também conhece tal criatura e ainda conhece o preparo que me trouxe às lágrimas.
Minha mãe sempre dizia que não existia alguém no mundo que conseguia tratar e fritar traíra como minha avó, mas não era só pelo preparo, era por tudo que estava em volta, o pirão d'água que falhamos inúmeras vezes reproduzir e que certa feita minha tia acertou de maneira a me tirar lágrimas como hoje. Porém, eu lembro que havia muito mais que só minha avó tratar aqueles peixes do lado de fora da casa a noite com alguma vela ou candeeiro.
Cresci sempre assustado com tanta escuridão que cercava aquela casa, a noite todo tipo de barulho poderia ser bicho, e foram muitas vezes. Meu medo maior era sempre quando meu pai saía, por qualquer motivo, e as especiais para pescar traíra a noite me atormentavam. A noite, na verdade, o fim de tarde é o melhor horário para pegar esse peixe, pelo menos era o horário que meu pai e meus tios saíam de casa para pescar. Sempre me foi aterrorizante tal atividade, num completo breu, distante suficientemente letal para alguns tipos de acidentes, mas foi assim que passei boa parte da minha infância e garanto que não fui grato por boa parte.
Até que um dia percebi que aquela distância me levava para um dos poucos lugares que já considerei casa nessa vida, e a complexidade é muita. Meu avô materno fez contribuições para essa propriedade antes mesmo de eu ser um acaso na vida dos meus pais. Depois, meus pais fizeram algumas contribuições, antes e até durante o exercício que lhes foram incumbidos de criar a mim e minha irmã, que os afastaram daquele lugar e talvez do sonho deles.
Consigo lembrar exatamente a posição necessária para ficar de olho nas duas portas que avisaram do seu regresso. Ao meu lado direito, a porta da cozinha dava direto para o curral e de trás dele que meu pai deveria surgir, mas nem sempre aquele lado da represa era o melhor para pesca, então a minha frente, essa porta já tinha a visão para as outras casas do complexo e para um acesso para o cacaueiro e ao outro lado da represa que ele poderia estar retornando.
Porém, não havia visão para além de um clarão feito por lanternas que, ao longo dos anos, insistíamos que tivessem um alcance melhor, mais potência e termos que não faço ideia. Algumas vezes o clamor meu e de minha irmã funcionava, outras nem tanto. Mas nem sempre havia escuridão, e foi com essa memória que chorei tantos anos depois.
Sem escassez, meu pai e meus tios se reuniam em volta de fogueiras para fazerem churrasco, e algo sempre se fez presente, a carne de charque, o jabá! Esse corte se agregava com o mesmo pirão d'água já citado e embalado por hinos e cantigas que minha avó puxava e embalavam à noite, histórias do passado, peripécias dos meus tios e do seu ex-marido faziam parte do repertório.
Não sei exatamente quando aquele lugar começou a fazer muito mais sentido para mim, mas talvez tenha sido quando meu pai saiu de casa. A sensação de perder alguém já não era novidade, mas agora não era morte que se apresentava e surrupiava, a vida fez o trabalho.
Quando ganhei minha primeira câmera, fui para a fazenda junto com minha mãe, minha prima, o esposo e talvez mais gente que não lembre. E registrei muito, acho que talvez tenha sido a última vez que minha mãe pisou naquele lugar, talvez eu nunca consiga perdoar meu pai por ter tirado isso dela também. Alguns meses depois, minha avó descobriu um câncer, sem solução.
Houve outras visitas, sempre anunciadas como a última e talvez eu sequer me recorde de quando foi à última. Me recordo de fazer meu pai parar na estrada para contemplar a lua cheia num completo breu que dava dimensões oníricas para ela. Lembro-me e gravei, eu e Leticia, jogados na grama feito duas crianças, o que eu era, rindo da vida como se houvesse mais um final feliz nos aguardando.
Lembro de comer cacau do pé, lembro de fazer chocolate com minha avó, lembro de ouvir música às margens da mesma represa que temia levar meu pai. Lembro muito e essa sempre vai ser minha sina. Lembro-me de como achei que tudo aquilo era eterno e que eu sempre teria ali para retornar quando precisasse viver.
Hoje, enquanto tentava fugir de certa amargura e aceitar que meu namorado está dizendo a verdade e que só estou com sintomas de ansiedade e não tendo um AVC, lembrei do completo breu e acho que no fim nunca tive medo dele, mas só de mim sozinho com ele.
Abri o celular e minha prima estava com o filho fazendo tudo aquilo que sempre sonhei fazer e fiquei feliz por ela conseguir fazer! E de certo modo temo talvez nunca ter essa coragem.


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